O capital rentista não cria e não produz
O desmonte das
teses liberais e da
economia neoclássica
‘O Capital no século XXI
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A obra Capital in the Twenty-First Century irrompe num momento de percepção coletiva que a distância entre ricos e pobres chegou a um nível inaceitável. Em 2011, o Movimento Occupy já havia apontado que o “capitalismo não está mais funcionando”. Candidaturas como a de Barack Obama, nos Estados Unidos, e deFrançois Hollande, na França, por exemplo, necessariamente tiveram que abordar o tema da desigualdade, muito embora, já em seus mandatos, em nada se atreveram a mexer com os grandes interesses em jogo de uma minoria rica. Não é exagero dizer que “a questão das desigualdades está no centro dos debates políticos e econômicos na Europa, nos Estados Unidos e até nas economias emergentes”, daí o fascinante sucesso da obra de Thomas Piketty.
A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN. Esta análise contou também com a contribuição deAndré Langer, professor na Faculdade Vicentina - FAVI. de Curitiba-PR.
Sumário:
'O Capital no século XXI' revoluciona ideias sobre desigualdade
Desigualdade não é um acidente, é inerente ao capitalismo rentista
Desmonte das teses liberais e da economia neoclássica
Soluções no próprio terreno do capitalismo
A esquerda abandonou a luta pela igualdade
PT abandou a ‘bandeira’ da taxação dos mais ricos
Uma obra em sintonia com as percepções do momento
Papa Francisco e Piketty. Consonância na análise
Conjuntura da Semana em frases
Eis a análise.
Desigualdade não é um acidente, é inerente ao capitalismo rentista
Uma das grandes novidades da primeira década desse século foi a irrupção do movimento antiglobalização em suas versões ‘O Povo de Seattle’ [milhares de manifestantes impedindo a rodada da OMC] e o ‘Povo de Porto Alegre’ [Edições do Fórum Social Mundial]. Na esteira de ambos – sempre por ocasião dos encontros doG-8, FMI, Banco Mundial – grandes atos ocorreram em Quebec, Praga, Melbourne, Gênova. Agora, nessa década, assiste-se a novos movimentos como Occupy Wall Street e o Movimento dos Indignados.
Embora com diferenças, tantos os movimentos do início da década como os de agora, denunciam o fato de que o “capitalismo não está mais funcionando”. A consigna do movimento Ocuppy ‘We are the 99%’ resume a percepção de que o mundo foi engolido pela financeirização e é controlado por uma espécie de superclasse mundial não superior a 1% da população mundial.
Essa percepção do movimento antiglobalização e dos novos movimentos ganhou um aliado de fôlego, a obra Capital in the Twenty-First Century [O capital no século XXI]. A tese dos movimentos de que o mundo é controlado por uma oligarquia financeira é corroborada com consistência pelo livro. De autoria de Thomas Piketty, jovem economista francês, a obra já é considerada um clássico e vem ganhando enorme repercussão em todo o mundo.
A obra de Piketty, elogiada por economistas progressistas de peso como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, ambos prêmios Nobel da Economia, e reconhecida como consistente por economistas conservadores é considerada inovadora. A interpretação é de que suas teses levarão a mudanças substanciais na maneira pela qual pensamos a sociedade e concebemos a economia.
A tese central do livro de quase 700 páginas é de que numa economia onde a taxa de rendimento sobre o capital supera a taxa de crescimento, a riqueza herdada sempre crescerá mais rapidamente do que a riqueza conquistada, ou seja, estamos retornando a um ‘capitalismo patrimonial’. Segundo Piketty, o crescimento da desigualdade é inerente ao capitalismo porque a taxa de retorno ou rendimento do capital (R: rate of capital return) é superior à taxa de crescimento econômico (G: rate of economic growth), relação resumida na versão em inglês do livro como “R>G” (R maior que G).
A explicação é que os juros da renda, quer seja um portfólio de ações, um bem mobiliário ou um complexo industrial, giram em torno de 5%. Se a taxa de crescimento cai abaixo disso, os ricos ficam mais ricos. E, ao longo do tempo, os herdeiros de grandes fortunas começam a dominar a economia.
Piketty demonstra, portanto, que hoje é a receita do capital, e não a renda do trabalho, que predomina no topo da distribuição de renda. Dessa forma, destaca, além de estarmos retornando ao século XIX, em termos de desigualdade de renda, estamos no caminho de volta ao capitalismo patrimonial, na qual o topo da economia é ocupado não por indivíduos talentosos, mas por dinastias familiares. Se o sujeito não nascer na riqueza, será bastante difícil enriquecer.
Logo, o fato de que os filhos dos ricos podem desfrutar de uma vida sabática, enquanto os filhos dos pobres continuam transpirando dentro de seus uniformes não é acidental: é o sistema funcionando normalmente.
Segundo o conservador The Economist, hoje 1% da população tem 43% dos ativos do mundo. Os 10% mais ricos detém 83%.
Assim, o autor d’O capital no século XXI põe por terra o mito central do capitalismo e a sua justificativa moral: aquela de que a riqueza é gerada pelo esforço, pela criatividade, pelo trabalho, pelo investimento correto, pelo risco assumido. Pikettydesmonta a tese dos conservadores: a insistência em que vivemos em uma meritocracia na qual se ganham grandes fortunas e estas são merecidas.
Nada mais mentiroso diz Piketty. Segundo ele, “uma das grandes forças divisionistas do trabalho hoje é o que chamo extremismo meritocrático. Este é o conflito entre bilionários cuja renda vem de imóveis e ativos, tais como um príncipe saudita, e de administradores. Nenhuma destas categorias faz ou produz coisa alguma senão sua riqueza, que é realmente uma super-riqueza que se distanciou da realidade concreta do mercado, o qual determina como a maioria das pessoas comuns vive”.
Ainda mais, diz ele, “pior ainda, elas competem entre si para aumentar suas riquezas, e o pior de todos os cenários é a forma como os superadministradores, cuja renda se baseia efetivamente na ganância, continuam aumentando seus salários, independentemente da realidade do mercado. É isso o que aconteceu com os bancos em 2008”.
O exemplo mais evidente do qual fala Piketty foi divulgado nesses dias e revela que executivos dos Estados Unidos ganham 331 vezes mais do que um empregado médio. Segundo a pesquisa, os diretores executivos de 350 empresas do país ganharam, em média, US$ 11,7 milhões no ano passado e o trabalhador médio recebeu US$ 35,293 mil.
Para Piketty isso é efetivamente uma forma de roubo, porém, ainda não é o pior crime dos superadministradores. Segundo ele, o que é mais prejudicial é a forma como eles se fixaram na competição com os bilionários cuja riqueza, acelerando para além da economia, sempre ficará fora de alcance. Isso cria em sua opinião um jogo permanente cujas vítimas são os “perdedores”, isto é, as pessoas comuns que não aspiram a tais status ou riquezas, mas que devem ser desprezadas não obstante pelos executivos-chefe, vice-presidentes e outros lobos de Wall Street.
Piketty e sua análise colocou a economia clássica dominante em constrangimento. Se a causa subjacente da catástrofe bancária de 2008 foi a queda na renda, ao lado de uma crescente riqueza financeira, então – diz ele – estas coisas não foram por acaso: não foram produtos de uma regulação frouxa ou de uma ganância simples. A crise é o produto do sistema funcionando normalmente, comenta.
O principal do livro, diz Rana Foroohar, em artigo na Time, é que Piketty “prova de forma irrefutável e clara, o que todos nós, de alguma forma, já suspeitávamos: os ricos estão ficando mais ricos em comparação com os demais e sua riqueza não está indo para baixo, na verdade está indo para cima”.
Desmonte das teses liberais e da economia neoclássica
O autor do Capital no século XXI desmonta as teses liberais clássicas. Piketty bate de frente com a premissa da economia neoclássica baseada em Adam Smith e DavidRicardo, que considera que a distribuição da riqueza é um tema secundário do crescimento e que em “economias maduras” (desenvolvidas) a desigualdade se reduz naturalmente. Esta tese se baseava na chamada curva de Simon Kuznets, que postulava que embora as economias fossem muito desiguais na primeira etapa da industrialização, tornar-se-iam mais igualitárias com o tempo, em virtude de um processo de amadurecimento intrínseco, resultado do crescimento.
Kuznets sustenta a tese de que a lacuna da desigualdade inevitavelmente encolhe na medida em que as economias se desenvolvem e se tornam sofisticadas. O economista bielorrusso fez uso das informações disponíveis à época para mostrar que, embora as sociedades se tornassem mais desiguais nos primeiros estágios da industrialização, esta desigualdade diminuiria na medida em que elas alcançassem a maturidade.
Tal “curva de Kuznets” fora aceita pela maioria dos profissionais de economia atéPiketty e seus colaboradores produzirem as provas para mostrar que isso era falso. Na verdade, a curva vai exatamente na direção oposta: o capitalismo começou desigual, achatou a desigualdade durante grande parte do século XX, mas atualmente está voltando em direção aos níveis dickensianos de desigualdade no mundo.
Kuznets desenvolveu sua hipótese nos anos 1950 e 1960, no mesmo período em que o capitalismo gozou de seus “25 anos dourados” (1947-1973), em que o crescimento chegou a 4,5% anualmente. Segundo Piketty, este período é uma exceção em razão de fatores históricos aleatórios e institucionais. “A grande crise de 1914-1945, com a destruição de capital pela inflação, as duas guerras mundiais e a Grande Depressão, somado a mudanças institucionais, como a criação do Estado de Bem-Estar, reverteram um pouco o processo de crescente desigualdade que víamos desde a revolução industrial”, disse ele ao jornal The New York Times.
Piketty analisou a evolução de 30 países, durante 300 anos e diz que caso se analise o período de 1700 até 2012, percebe-se que a produção anual cresceu em média 1,6%. Ao contrário, o rendimento do capital foi de 4 a 5%”.
Soluções no próprio terreno do capitalismo
O forte do livro de Thomas Piketty é demonstrar que a desigualdade não é um acidente, mas uma característica inerente ao capitalismo. Aqui ele se aproxima deMarx. A obra de Piketty, entretanto, diferentemente de O Capital de Marx, contém soluções no próprio terreno do capitalismo. A crítica de Marx ao capitalismo não era sobre a distribuição, mas sobre a produção. Para Marx, não seria o aumento da desigualdade, mas sim uma ruptura no mecanismo de lucro que levaria o sistema a seu fim. Já a abordagem de Piketty não é destruir o capitalismo, mas reformá-lo através de forte intervenção estatal via tributação da riqueza financeira-patrimonial.
Nessa perspectiva, a solução proposta por Piketty é tributar os muito ricos. “O que defendo é um imposto progressivo, um imposto global, com base na taxação da propriedade privada. Esta é a única solução civilizada”, diz ele.
Quando comecei, diz Piketty, “simplesmente coletando dados, fiquei realmente surpreso pelo que encontrei: que a desigualdade está crescendo tão rapidamente e que o capitalismo não pode, aparentemente, resolvê-la. Muitos economistas começam pela maneira inversa, fazendo perguntas sobre a pobreza, mas eu quis entender como a riqueza, ou a extrema riqueza, está contribuindo para aumentar a lacuna da desigualdade. E o que percebi é que, como dito antes, a velocidade na qual a lacuna da desigualdade cresce está ficando mais e mais rápida. É preciso perguntar o que isso significa para as pessoas comuns, que não são bilionárias e que jamais irão ser bilionárias. Ora, eu acho que isso significa uma deterioração na primeira instância do bem-estar econômico do coletivo, em outras palavras: a degradação do setor público (...) Há uma crença fundamentalista por parte dos capitalistas de que o capital salvará o mundo, e isso simplesmente não é o caso. Não por causa do que Marx disse sobre as contradições do capitalismo, pois, como descobri, o capital é um fim em si e nada mais”.
No caso americano, “ele propõe um imposto de 80% sobre os rendimentos acima de 500 mil dólares ao ano nos EUA, assegurando que não haveria nem uma fuga de grandes executivos, tampouco uma desaceleração do crescimento, uma vez que o resultado seria simplesmente suprimir tais rendimentos”.
A esquerda abandonou a luta pela igualdade
A problemática das desigualdades retoma o tema da esquerda, relação essa que se esfumaçou. A esquerda esqueceu-se – ou, talvez, seja melhor dizer abandonou (conscientemente) – a luta pela igualdade. De acordo com o pensador político italianoNorberto Bobbio, um dos elementos que distingue a esquerda da direita é justamente o lugar e a importância concedidos à igualdade.
Mas, nas últimas décadas – marcadas por uma nova revolução tecnológica, pela emergência da economia financeira, que resultou na globalização hegemonizada pelo mercado e, concomitantemente, no fim dos grandes discursos interpretativos e na crise da esquerda em todo o mundo – assistiu-se a um lento e progressivo retorno das desigualdades econômicas e sociais. A esquerda historicamente fez da luta pela igualdade uma das suas principais bandeiras. Entretanto, abandonando sua ousadia e criatividade, ou rendendo-se à realpolitik na medida em que a política passou a estar cada vez mais próxima da gerência empresarial, a esquerda foi se descaracterizando a ponto de alguns se perguntarem se a distinção entre direita e esquerda ainda fazia sentido ou se não se tornara “anacrônica”.
Bobbio, por sua vez, nunca concordou e, por isso mesmo, sempre insistiu na distinção. E, para ele, o núcleo por excelência da distinção não está na liberdade, mas na igualdade. Isso porque, enquanto a direita tende a ser não-igualitária e a propor ou promover políticas que efetivamente tornam os cidadãos menos iguais, a esquerda tem a igualdade como sua estrela polar e procura promover políticas que contrastem com as desigualdades. Com outras palavras, enquanto o partidário da esquerda acredita que os homens são mais iguais do que desiguais e que a maioria das desigualdades são sociais e, portanto, elimináveis, o partidário da direita acredita, ao contrário, que os homens são mais desiguais do que iguais, e que a maioria das desigualdades é natural e ineliminável.
É essa verdade elementar que foi esquecida ou abandonada pela esquerda no mundo e no Brasil. Engolida pelos cantos de sereia do mercado e da mercantilização inclusive da política – quando os políticos se tornam gestores – a esquerda tem “medo de dizer seu nome”, como diz o filósofo brasileiro Vladimir Safatle. Neste contexto, ele avalia criticamente as conquistas dos governos Lula e Dilma, como governos, em teoria de esquerda, mas que pararam “de pensar a desigualdade como o problema central da sociedade brasileira”.
Orlando Alves dos Santos Jr., por sua vez, refletindo sobre o “legado oculto” do modelo de desenvolvimento no Brasil, evidencia como a “racionalidade do mercado” está se sobrepondo à da “justiça social”. Um parágrafo relativamente longo ajuda a explicitar esta ideia e iluminar a perspectiva de uma esquerda mais preocupada em fazer o bolo crescer, do que em dividi-lo.
Diz Orlando em sua entrevista especial à IHU On-line: “Nessa conjuntura, ganha força no senso comum a ideia de que as cidades teriam um papel protagonista no desenvolvimento econômico. Daí o processo de o poder público começar a atuar como uma empresa. Isso é fortemente aceito nesta ideologia na qual estamos inseridos, na qual os governos devem investir em áreas que são capazes de atrair investidores e recursos, assim como incorporar os princípios de competitividade entre as cidades. Com isso se vão adotando os critérios do mercado. Não se trata de que o desenvolvimento econômico estivesse ausente das agendas dos municípios, mas, antes, a ideia era de que o papel dos governos consistia em promover o bem-estar social e atuar nos desequilíbrios gerados pele mercado, ou seja, diferente do papel de mercado. A preocupação central do antigo padrão era o conjunto, a totalidade. No novo padrão o que há de importância são os locais possíveis de atrair investimentos. Isso é o que chamamos de neoliberalização, e isso tem a ver com as moderações de forças, com os acordos e os conflitos em cada localidade em que isso vai ser mais ou menos aceito. A ideia de desenvolvimento está fortemente vinculada à ideia do econômico vinculado às lógicas de mercado. Uma perspectiva crítica deveria se opor a essa noção a partir da ideia de justiça social, do desenvolvimento humano”. Uma explicitação da tese abordada em uma Conjuntura da Semana anterior, ou seja, a de que o Brasil não se libertou do economicismo.
Também o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira constata, em artigo, o deserto de ideias novas e criativas na atual conjuntura brasileira (aliás, a mesma constatação deSafatle). “Hoje, falta aos brasileiros tanto projeto de desenvolvimento quanto projeto de distribuição. Teremos eleições no final do ano, mas os candidatos não têm projetos. Na verdade, nunca a sociedade brasileira foi tão dividida politicamente entre ricos e pobres, e falta à nação um projeto – sobra o mal-estar”, analisa. Mais grave ainda, aponta Bresser-Pereira nas entrelinhas, é que esse projeto foi abandonado por toda a sociedade brasileira – e não apenas pela esquerda, embora ela tenha a missão de manter a pira da igualdade sempre acesa.
Os debates sobre as desigualdades assumiram, com frequência, um viés de direita, servindo para acentuá-las, em vez de atenuá-las.
Vê-se, assim, que o livro de Thomas Piketty tem o mérito de jogar nova luz sobre uma problemática crucial para o mundo hoje e redireciona os debates econômico-políticos. Além disso, tem o mérito de recuperar uma bandeira característica da esquerda – a luta contra as desigualdades sociais que, de acordo com Pierre Rosanvallon, se mundializaram. E, portanto, diz respeito a todas as sociedades indistintamente.
PT abandou a ‘bandeira’ da taxação dos mais ricos
Um aspecto interessante da obra de Piketty, mencionado anteriormente, é o de desafiar a narrativa de centro-esquerda, particularmente da social-democracia que acreditou que o liberalismo poderia coexistir com a distribuição de renda. A ideia do “iate do oligarca coexistindo com o banco de alimentos para todo o sempre”, em síntese de Paul Krugman sobre o Piketty.
É por isso que a esquerda fracassou na Europa e também a pretensa esquerda dos democratas americanos. Elas jamais se atreveram em alterar a dinâmica concentradora de renda.
Com a esquerda latino-americana, particularmente a brasileira, se deu o mesmo. A chegada da esquerda no poder no Brasil não alterou a dinâmica concentradora de renda dos mais ricos. O que se assistiu e ainda se assiste é que os que sempre ganharam muito continuam ganhando.
O PT abandonou as ‘bandeiras’ de taxação dos mais ricos. Recuou na auditoria da dívida externa – um ralo que absorve quase metade do orçamento para o pagamento dos encargos da dívida, disse não à taxação do capital financeiro na reunião da cúpula do G20 em Toronto, em 2010, nunca esboçou sequer um projeto – proposta que historicamente defendia - de taxação da riqueza e da herança patrimonial e não ousou numa reforma tributária progressiva de tirar dos mais ricos para transferir para os mais pobres.
O PT fracassou rotundamente num projeto de afrontar a escandalosa renda dos mais ricos.
A taxação dos fluxos financeiros internacionais – a chamada Taxa Tobin –uma bandeira histórica de diversos movimentos internacionais, como a ATTAC - Ação pela Tributação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos – chegou a constar no item 54 do próprio "Programa de Governo Lula 2002", denominado "Concepção e Diretrizes para o Governo do PT para o Brasil" e depois sumiu. O PTtambém já defendeu que os paraísos fiscais fossem taxados internacionalmente, a fim de combater a evasão de divisas e abastecer fundos de cunho social. Também, nunca mais falou disso.
O programa anti-capitalista do PT foi abandonado. Na crise econômica mundial de 2008, Lula chegou até a criar um Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional - PROER - para ajudar os banqueiros.
A esquerda acabou sendo seduzida pela economia liberal e de certa forma rendeu-se ao pensamento único propalado pelo capitalismo global, cuja ascensão apresentou-se como um destino contra o qual não se podia lutar – a tese de que deveríamos nos adaptar a ele ou perderíamos o passo da história e seríamos esmagados.
A única coisa que se podia fazer era tornar o capitalismo global o mais humano possível. “A esquerda passou a fazer coisas que até mesmo a direita não foi capaz”, afirma Slavoj Zizek.
A penúria da esquerda talvez encontre uma explicação na aguda intuição de Zizek, a de que o próprio neoliberalismo foi legitimado por determinada esquerda. Segundo ele, “no Reino Unido, a revolução thatcheriana foi, no seu tempo, caótica e impulsiva, marcada por contingências imprevisíveis, porém, foi Tony Blair quem conseguiu institucionalizá-la ou, nas palavras de Hegel, transformar (o que num primeiro momento parecia) uma contingência, um acidente histórico, numa necessidade. Thatcher não era thatcherista, era simplesmente ela mesma. Foi Blairquem realmente deu forma ao thatcherismo”, afirma.
O mesmo aconteceu, com matizes diferenciados, nos EUA. Foi Clinton – um democrata com ares de esquerda – quem legitimou a ‘Era Reagan’, ou seja, o ‘Consenso de Washington’ e os valores neoliberais. O mesmo aconteceu comMiterrand na França, com Massimo D`Alema na Itália, para ficar em poucos países. O Norte do hemisfério foi engolido pelo ‘pensamento único’. Mas quem o legitimou, sobretudo, foi aqueles que se diziam de esquerda.
O mesmo de certa forma aconteceu no Brasil. Quem abriu as portas para a entrada do neoliberalismo no país foi primeiro Collor e depois Fernando Henrique Cardoso, mas quem o habilitou como política de Estado foi Lula com o seu programa ‘Pós-Consenso de Washington’. Apenas no segundo mandato Lula assumiu um programakeynesiano, porém, optou por políticas sociais compensatórias – o sucesso, do programa Bolsa Família, perfeitamente compatível com os princípios neoliberais de raiz economicista.
Na opinião de Vladimir Safatle, a experiência de poder no PT é frustrante: “Para qualquer partido de esquerda o problema central vai ser sempre a desigualdade social, econômica e de direitos. E, de fato, num primeiro momento, esse foi o problema que apareceu como foco central do PT. Só que esse problema está cada vez mais difícil de ser encontrado como prioridade do governo. Falta um novo ciclo de políticas de combate à desigualdade. Esse é um sintoma da mortificação política. Do ponto de vista intelectual, temos a estabilidade do cemitério. Por isso, diria que a função deste ciclo terminou”.
Uma obra em sintonia com as percepções do momento
A obra Capital in the Twenty-First Century irrompe num momento de percepção coletiva que a distância entre ricos e pobres chegou a um nível inaceitável. Em 2011, oMovimento Occupy já havia apontado que o “capitalismo não está mais funcionando”. Candidaturas como a de Barack Obama, nos Estados Unidos, e de François Hollande, na França, por exemplo, necessariamente tiveram que abordar o tema da desigualdade, muito embora, já em seus mandatos, em nada se atreveram a mexer com os grandes interesses em jogo de uma minoria rica. Não é exagero dizer que “a questão das desigualdades está no centro dos debates políticos e econômicos na Europa, nos Estados Unidos e até nas economias emergentes”, daí o fascinante sucesso da obra deThomas Piketty.
Conforme reportagem do The Observer, “em blogs e websites não especializados em todo os EUA, a obra aqueceu discussões sobre o poder e o dinheiro, questionando o mito presente exatamente no centro da vida cotidiana – o de que o capitalismo melhora a qualidade de vida de todos”. A reportagem também destaca a avaliação deBranko Milanovic, ex-economista do Banco Mundial, que descreveu o trabalho dePiketty como “um dos livros divisores de águas no pensamento econômico”. Outro meio de comunicação afirma que a obra foi capaz de reescrever “200 anos de pensamento econômico sobre a desigualdade”.
Na França, seu país de origem, Piketty “está se tornando amplamente conhecido como comentador sobre questões públicas, escrevendo principalmente para os jornais Le Monde e Libération”, tendo suas ideias discutidas por políticos franceses de diferentes matizes. Contudo, chama a atenção “sua crescente influência no mundo da política dominante anglo-americana”. Esse pode ser mais um indício de que a contribuição de Piketty mexe com todos, em razão do fato de que a pobreza aumenta em todo o mundo.
Segundo informações do Financial Times, até mesmo a Casa Branca e o Departamento de Tesouro americano já entraram em contato com Piketty. A revista Nova York menciona o autor como o “Economista Rock-Star”. Seu livro alcançou o primeiro lugar na lista dos mais vendidos da Amazon, em sua versão em inglês, no mês passado. Em entrevista ao jornal Le Monde, Piketty reconheceu que “a novidade é que é um trabalho mais abrangente, por isso é normal que ele chame mais a atenção. Estou surpreso com o sucesso, mas ao mesmo tempo o objetivo era chegar a tantas pessoas”.
Na opinião de Paul Mason “os termos e as explicações da obra são extremamente simples, com uma infinidade de dados históricos, Piketty reduz a história do capitalismo a um claro arco narrativo. Para desafiar a sua argumentação, é preciso rejeitar suas premissas e não sua elaboração”.
É nesse sentido que o economista Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia, enfatiza que o livro “é um prodígio de honestidade. Outros livros de economia foram sucesso de vendas, mas, diferentemente da maioria deles, a contribuição de Piketty contém uma erudição autêntica que pode causar uma mudança na retórica. E os conservadores estão aterrorizados”.
A BBC Mundo apresentou matéria que traz como título “Thomas Piketty, a nova estrela da economia mundial”. A respeito da obra, destaca que “a direita [americana] reconheceu ‘a extraordinária magnitude dos dados reunidos e comparados’, mas discordou da tese principal e da ‘pobreza’ das soluções propostas”. Ao passo que, de uma perspectiva de centro-esquerda, avaliou-se que “sua tese se encontraria dentro dos limites da economia ‘neoclássica’”. Nada mais.
Contudo, os fundamentos das proposições de Piketty demonstram-se muito resistentes frente às fraquíssimas refutações que surgiram até o momento. Isso tem tornado o economista um problema, principalmente, para a direita.
Papa Francisco e Piketty: A desigualdade como a raiz de todos os males
Já está mais do que comprovado: Francisco é um papa que tem posição e que toma partido pelos mais vulneráveis. Até o momento, em seus pronunciamentos, não tem se eximido de falar sobre os principais problemas mundiais: fome, guerras, desemprego, os dramas dos refugiados e imigrantes, tráfico de pessoas, etc. Além disso, não abre mão de ir à raiz desses males, atacando o atual sistema econômico e a voracidade do mercado, que ao invés da solidariedade impulsiona a indiferença. É a chamada globalização da indiferença.
Não por acaso, a gritante desigualdade mundial foi o tema de um dos tuites de Francisco. “A desigualdade é a raiz de todos os males”, tuitou. A coincidência dessa mensagem com o atual momento de efervescência em torno da obra de Pikettyevidencia certa consonância entre a análise deste economista e as diversas críticas que, desde o início de seu pontificado, o Papa vem fazendo ao atual modelo de sociabilidade e vida econômica.
Como bem frisou o editorial do National Catholic Reporter – NCR, “Francisco ePiketty veem a mesma condição humana, o primeiro através dos olhos da experiência e dos evangelhos; e o segundo, através de pilhas de documentos e planilhas”. O queFrancisco “conhece a partir da experiência – e que está dizendo abertamente ao mundo – é que o seu povo não está comendo, enquanto que, relativamente, uns poucos super-ricos vivem num esplendor inimaginável”.
De acordo com Robert Christian, membro da organização ‘Democrats For Life of America’, as bases da crítica de Francisco à desigualdade mundial estão em seu documento ‘Evangelii Gaudium’. Nele, “o pontífice usa uma linguagem que é bastante semelhante à empregada em seu tuíte dentro do contexto econômico [...]. Condena a mentalidade libertária que enfatiza muito a autonomia e o individualismo e pede pela criação de estruturas sociais e políticas mais justas, que abordem as causas estruturais da pobreza. Ele é explícito em sua rejeição da abordagem que se baseia demasiadamente nos livres mercados: ‘Não podemos mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado’”.
Em um paralelo, assim como as proposições de Piketty estão atordoando os que estão bem acomodados e satisfeitos com o atual sistema, o Papa, “assumindo de peito aberto as temáticas econômicas e sociais”, tem causado muito incômodo aos reacionários de plantão. Conforme analisou o jornalista Francesco Peloso, em matéria publicada no sítio Linkiesta, as críticas de Francisco “ao modelo capitalista expressadas no documento Evangelii gaudium provocaram fortes reações dos think tanks conservadores do exterior, da direita católica norte-americana nostálgica dowojtylianismo, do Tea Party e daquela parte da imprensa que apoia a inoxidabilidade da religião neoliberal apesar da crise”.
O Papa já se manifestou criticando a promessa de que “quando o copo estivesse cheio, ele transbordaria, e os pobres seriam beneficiados com isso”. Na verdade, “o que acontece, ao invés, é que, quando está cheio, o copo magicamente se engrandece, e assim nunca sai nada para os pobres”. A preocupação do Papa com a desigualdade econômica demonstra a sua capacidade pastoral de se compadecer com a dor e o sofrimento daqueles que são os últimos na hierarquia social.
Conjuntura da Semana em frases
Bilionários e as universidades
“O "Capital" (de Thomas Pikerty) é um monumento de pesquisa e elegância. Piketty trabalhou com acervos estatísticos jamais estudados, e reconhece que isso só foi possível porque apareceu o computador. Obsessivo, mergulhou até nas listas de bilionários das revistas de negócios, mesmo ressalvando que têm pouco valor científico. (Os brasileiros que compraram ações de Eike Batista sabem que é isso mesmo.) Se os números dos bilionários da "Forbes" merecem pouca fé, as carteiras de investimentos das universidades americanas merecem toda. Os patrimônios mobiliários daquelas que têm fundos com mais de um bilhão de dólares cresceram 8,8% ao ano entre 1980 e 2010. Já as pobrezinhas, com menos de 100 milhões, ficaram com 6,1% ao ano. Harvard, com US$ 30 bilhões, teve rendimentos de 10,1% anuais. (As reservas da Universidade de São Paulo encolheram.) – Elio Gaspari, jornalista –Correio do Povo, 04-05-2014